28.1.07

Aborto (III)

Desafiaram-me para escrever um texto que distinga um ser vivo (feto) de uma PESSOA. Em primeiro lugar, uma pequena nuance. No meu primeiro texto, escrevi “ser humano vivo”, não apenas “ser vivo”. Há alguma diferença.
Efectivamente, nesta fase (fecundação e momentos imediatamente posteriores), não se pode equiparar esse “ser humano vivo” a uma pessoa. Se há consenso na comunidade científica que existe um “ser humano” antes das dez semanas de gestação, o mesmo não se verifica quando se introduz o conceito de “pessoa”. Daí muitos concluírem que apenas se deve considerar um atentado à vida quando está em causa a “pessoa”.
Se recuarmos no tempo, Platão afirma (pela voz de Sócrates), no seu livro Fédon que “ao tirar a vida de um ser humano causamos fúria aos deuses, enquanto que ao matar um animal podemos causar raiva somente ao seu dono. Consequentemente, o dono de um animal pode matá-lo quando quiser.”
Pelo mesmo prisma alinha Kant. Segundo este, “todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Esse valor também pode ser chamado de valor intrínseco.” Podemos perceber na teoria kantiana a distinção das coisas que têm valor absoluto ou incondicional: “o valor de todos os objectos que possamos adquirir pelas nossas acções é sempre condicional”.
Os seres irracionais cuja existência depende, não da nossa vontade, mas da natureza, têm, para Kant “apenas um valor relativo como meios e, por isso, se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregue como simples meio”.
O australiano Singer, filósofo e professor universitário nos Estados Unidos, rejeita o argumento do valor intrínseco, dizendo que não podemos dar algum tipo de dignidade ou valor a recém-nascidos, deficientes mentais, assassinos psicopatas e negarmos esse valor a animais como baleias, gorilas, vacas, cavalos. Ainda segundo Singer, mais argumentos são necessários para justificar a crença de que somente os seres humanos têm algum tipo de valor especial, dignidade ou que são “fins em si mesmos”. Faz uma distinção entre “ser humano” e “pessoa”, usando o último conceito para referir seres autoconscientes, ou seja, conscientes de si mesmos como entidades distintas existindo ao longo do tempo. Esse ser, segundo Singer, será capaz de ter desejos relativos ao seu próprio futuro, alguém que sabe que existe, sabe que existe um mundo à sua volta, interage com esse mundo, sente dor, prazer e felicidade e elabora perspectivas em relação ao seu futuro. Acrescenta ainda que matar uma lesma ou um recém-nascido de um dia não frustra nenhum desejo, pois as lesmas e os recém-nascidos são incapazes de tê-los. Nesse sentido, Singer chega à conclusão de que é possível que um ser humano – membro da espécie Homo sapiens – não seja considerado uma pessoa. Cito: “Quando um ser não for capaz de sofrer, nem de sentir alegria ou felicidade, não haverá nada a ser levado em consideração”.
Ainda na perspectiva de Singer, se consideramos que um humano, com severa deficiência mental, não pode ser considerado pessoa e nunca poderá tornar-se uma pessoa, será plausível sustentar que este ser humano não tem o mesmo direito à vida que um ser humano adulto normal tem.
Como se pode perceber, Singer defende a tese de que existe uma diferença entre o valor da vida de uma pessoa e o valor da vida de um ser não-pessoa, e saber quais animais possuem a consciência de si é uma questão crucial no debate sobre se um ser tem direito à vida ou não.
Abreviando, porque o texto vai longo, uma das críticas que se tem feito a Singer é a de que a sua filosofia pode levar à eugenia, princípio que defendia a melhoria da raça humana, com conceitos que podem ser facilmente aplicados com o uso da genética moderna. Um problema ético se levanta imediatamente: o abuso de discriminação, categorizando pessoas como aptas, ou não-aptas à reprodução. Exemplo disso foi a onda de críticas que se fizeram ouvir na Alemanha por verem semelhanças com as práticas nazis.
O próprio Singer teve consciência do problema que suscitou. A mãe, portadora da doença de Alzheimer, teria de ser considerada, segundo as teorias por ele preconizadas, uma “não-pessoa”. Perante este facto, chega a afirmar o seguinte: “Penso que isto me fez ver como os assuntos relacionados com este tipo de problema são realmente difíceis.”
E são. E não há uma verdade única, nem um pensamento que faça unanimidade.
Retomando a questão que me traz aqui, deve o problema do aborto ser visto sob o prisma da ciência ou como uma questão de moral? Haverá da parte de quem defende o NÃO um “fundamentalismo científico” ou uma imposição moral? Na minha opinião, o problema é diferente. Definir o que é vida humana e o que não é, não é uma questão de fé, de moral ou de ideologia. É uma questão científica. Cabe à ciência definir o que é vida humana. A moral surge quando atribuímos ( ou não) valor a essa vida humana.
Eu opto por valorar essa vida humana. Por isso, entre outras razões, vou votar NÃO!

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5 Comments:

Blogger Amenophis said...

Eu continuo com uma dúvida. É admissivel o aborto em alguma situação?
E já agora mais uma questão. Deve a mulher que pratica aborto ir parar à prisão?

28/1/07  
Blogger Vítor Amado said...

claro que não.
amanhã vou tentar explicar essa questão.Posso adiantar que era completamente desnecessário o referendo. Bastava apenas alterar a moldura penal. E houve (e há) propostas.Não foram aceites pelo partido socialista.

28/1/07  
Blogger Ai meu Deus said...

Ó VA, por onde te meteste, homem! ;-)

1) não distingues (não apontas as características distintivas entre) "ser humano vivo" de "pessoa".

2) Deve ser por isso que depois não emites, nem fundamentas, a tua opinião; limitas-te a avançar a de ALGUNS filósofos. Eu poderia avançar muitos outros de sentido contrário, a começar, pasme-se!, por São Tomás de Aquino que defendia o aborto até por volta do 40º dia de gravidez. Ou Santo Agostinho, que também o aceitava. A própria Igreja Católica só condenará o aborto a partir do século XIX. Queres mais "autoridades"? (Penso não serem necessárias: o que verdadeiramente interessa são argumentos e as tuas citações não têm nenhum).

3) Quanto a Singer... não comento o que escreves, porque o que sobre ele escreves, não sendo suficientemente claro, também não é significativo (passa ao lado do problema do teu texto).

Em suma, fica a tua escrita no ponto (quase) zero: era necessário a) saber o que caracteriza uma pessoa; b) saber quando é que essa(s) carcacterística(s) aparece(m). Nada do que escreveste responde a estas 2 "necessidades".

Enquanto continuo à espera, segue um abraço do

Ai meu Deus

29/1/07  
Blogger Vítor Amado said...

Em relação a este ponto, não entro em mais discussões.Para mim, a posição é clara.Evidentemente que ao longo da história há posições diversas e contraditórias em relação ao tema em análise.
Só uma observação em relação ao teu ponto 1: transcrevo o que escrevi:
"Faz uma distinção entre “ser humano” e “pessoa”, usando o último conceito para referir seres autoconscientes, ou seja, conscientes de si mesmos como entidades distintas existindo ao longo do tempo. Esse ser, segundo Singer, será capaz de ter desejos relativos ao seu próprio futuro, alguém que sabe que existe, sabe que existe um mundo à sua volta, interage com esse mundo, sente dor, prazer e felicidade e elabora perspectivas em relação ao seu futuro."
abraço.

29/1/07  
Blogger Ai meu Deus said...

acabem-se as discussões, então (antes de se iniciarem, que eu só queria um argumentozinho TEU)... ;-)

ok! como nunca obriguei ninguém a nada (nem a discutir), fim de papo!...

29/1/07  

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