29.10.09

Ainda a polémica com Saramago (II)

"As palavras de Saramago pareceram-me ainda como o "much ado about nothing", o muito barulho para nada, com que soa qualquer coisa que nem remotamente é novidade. Há cerca de dois mil anos que os filósofos judeus vêm debatendo a brutalidade de Deus e da humanidade no Antigo Testamento, em tons bastante mais emocionados do que os usados no debate em causa. Talvez a história mais criticada do Antigo Testamento seja narrada no livro deJob. Depois de um Satanás céptico dizer a Deus que a piedade de Job se deve apenas à prosperidade de que goza, Deus põe à prova a fé e a dedicação de Job arruinando-lhe a vida da forma mais horrível. Podemos encontrar comentários sobre a interpretação a dar a esta história - assim como de qualquer outra história bíblica - em centenas de livros escritos por filósofos judeus - e também alguns cristãos - ao longo dos últimos dois mil anos. Como é possível que alguém que se considera instruído não tenha consciência desta herança cultural?
As primeiras obras escritas analisando a natureza de Deus, tal como é descrita no Antigo Testamento, são o Talmude, um compêndio dos textos rabínicos sobre ética e cultura compilados entre os anos 200 e 500 da era cristã. Mais tarde, na época medieval, o tema da natureza de Deus foi explorado por dezenas de talentosos filósofos medievais, incluindo pensadores magníficos como Maimónides e Moisés de Leão, autor do século XIII, que escreveu o livro mais influente do misticismo judaico, o Zohar. Mais recentemente, estudiosos como Walter Benjamin e Martin Buber acrescentaram facetas modernas ao debate. A natureza da relação de Deus com o homem - a Sua crueldade e, em particular, a Sua "surdez" face ao sofrimento humano - tornou-se num dos mais importantes tópicos de discussão no mundo judaico desde o Holocausto, pelo mais óbvio e terrível dos motivos. Simultaneamente, este debate filosófico foi sendo reflectido na literatura judaica desde os meados do século XIX, na obra de muitos escritores, de Sholem Aleichem e Shmuel Yosef Agnon - que recebeu o Prémio Nobel em 1966 - a Philip Roth.
Concluindo, custa-me compreender como é que alguém, ainda que vagamente familiarizado com a filosofia e a literatura ocidentais, pode acreditar que erguer-se em 2009 contra a crueldade contida no Antigo Testamento tem alguma coisa de novo ou de chocante. Ou sequer interessante. O que é interessante é perguntarmo-nos por que razão exige Deus uma tão absoluta fidelidade aos israelitas e os castiga tão brutalmente por Lhe desobedecerem. Por que são outros povos, como os cananitas, olhados com tanto desprezo. O que diz tudo isto sobre as condições políticas e sociais em Israel em 500 a.C. E o que diz a relação de Deus com Israel sobre a "natureza tribal" das religiões da antiguidade.
Estes, sim, são temas importantes a merecer respostas sérias dos estudiosos.
Mas, naturalmente, nada disto mereceu a atenção de Saramago nem dos que reagiram às suas críticas ao Antigo Testamento. O que me traz ao aspecto mais perturbador e alarmante de toda esta tola controvérsia. Os jornalistas e os responsáveis religiosos portugueses de um modo geral trataram os comentários de Saramago como importantes! Graças a eles, os meios de comunicação deram-lhe mais tempo na televisão e mais espaço nos jornais do que a outras questões muito mais importantes. E alguns representantes da Igreja Católica atacaram-no com uma ferocidade emocional que revela bem que consideram tais opiniões sobre o Antigo Testamento como um obstáculo à fé. Mais uma vez, tal como salientei mais atrás, os comentários de Saramago não são nem chocantes nem novos. E apenas representam um obstáculo à fé para quem não tenha a menor ideia do que é e do que pretendia ser o Antigo Testamento. As críticas de Saramago são unicamente banalidades superficiais, que revelam uma profunda ignorância da filosofia e da religião ocidentais e uma total incompreensão da linguagem poética e narrativa de desde há mais de três mil anos. Só quem ignora tal herança, jornalistas e responsáveis religiosos incluídos, poderia tornar o patético desabafo do romancista numa tal polémica. E, para mim, essa foi a parte mais desanimadora e mais perturbante de toda esta "inventada" notícia: descobrir que na sociedade onde vivemos, entre os seus membros mais ilustres e cultivados, possa prolongar-se tão lastimosa ignorância de uma parte importantíssima do legado civilizacional da filosofia e da cultura ocidentais."

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5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

"E não é que estamos de acordo?"
Mas, que raio agora só eu e o anónimo comenta-mos isto?
Bjos, ml.

31/10/09  
Blogger jorginho da hora said...

Cara, li com muita atenção e concordo com vc. Não cheguei a ler as declarações do Saramago, Mas acredito que não deve ter sido nada de novo nem tão importante assim para criar tamta polemica como vc bem disse.

Um abraço !

4/11/09  
Blogger Mim said...

As Reformas religiosas não aconteceram porque a Igreja estava em decadência, porque os Padres, Bispos e Membros do Clero tinham comportamentos desviantes, ou desviados, porque de alguma forma a igreja estivesse em crise.
As Reformas aconteceram porque se colocou em causa a questão das mediações. A Igreja estava em crise, não por causa dos seus membros, mas porque Roma e Avinhão eram ambas legitimas. E agora? Quem medeia? Ambos os Papas foram eleitos por um concilio, tinham legitimidade? Quem medeia a salvação?
A Modernidade trás para a mesa discussões em torno da salvação das almas.
E esse debate vem sendo travado ao longo dos séculos.
Tanto mais que hoje em dia continuam a haver debates em torno da legitimidade, é certo que se revestem de variadas formas, por exemplo a questão da vida e da morte e da intervenção ou não dos médicos, a questão da clonagem, etc.
Saramago, a meu ver, reinventa os debates em torno da salvação, e acima de tudo da fé, da legitimidade.
São questões profundas na sociedade, que mexem com o intimo de cada um.
Acreditar, ou não, em Deus, parece-me secundário.
Lembrando o pensamento de Clavino: Deus na sua infinita sabedoria já traçou um plano para o destino de cada um, o Homem é pecador, e Deus com a sua misericórdia concede a salvação a alguns, condenando os outros à morte eterna (dupla predestinação).
Reduzir esta polémica à questão de um deus mau e vingativo, ou à questão economicista da venda de mais 1 exemplar, é reduzir a coisa alguma os debates em torno da vida/morte, que no fundo assombram a mente de cada um de nós.

5/11/09  
Anonymous Anónimo said...

Será mesmo um Deus mau e vingativo?
Queria acreditar no contrário!
Porque perdoa a uns e não aos outros?
Há realmente,pessoas de 1ª e de 2ª categoria?
Ouvi numa missa de 7º dia que os justos não têm lugar cativo,e os pecadores,podem ir para o céu!
A questão é pedir perdão ou não!
Será justo? Não pecamos todos,uma vez ou outra,mesmo os que se dizem justos e castos?
Acredito que sim, é o grande problema do que haverá para além da morte!
O medo de viver em função do que acontecerá! Punição ou clemência??
Então deixaremos de viver, de ser livres,por medo do inferno! De sermos punidos, pelo nosso caminho percorrido, que já estava préviamente traçado por Ele?
Afinal onde entra a justiça!

3/3/10  
Anonymous Anónimo said...

Ao Exmo Sr. Dr.Vitor Amado,tenho um pedido de desculpas pessoal a fazer.Perdoa-me, não sei como me explicar.
Não podia estar no shopping porque tinha uma consulta às 16,00h e saí de lá às 20,00h.
Não sei como explicar o acontecido, mas não quero que faças uma leitura imprópria.
Gostaria de falar contigo.
Tudo de bom!
Espero vivamente,que estejas bem, muito bem!

4/3/10  

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