Livro do Desassossego

Cansar-me a rua? Canso-me só quando penso. Quando olho a rua, ou a sinto, não penso: trabalho com um grande repouso íntimo, metido naquele canto, escriturantemente niguém. Não tenho alma, ninguém tem alma - tudo é trabalho na casa larga. Onde os milionários gozam, sempre no estrangeiro deles, também há trabalho, e também não há alma. Fica de tudo um ou outro poeta. Quem me dera que de mim ficasse uma frase, uma coisa dita de que se dissesse, Bem feito!, como os números que vou inscrevendo, copiando-os, no livro da minha vida inteira.
Nunca deixarei, creio, de ser ajudante de guarda-livros de um armazém de fazendas. Desejo,com uma sinceridade que é feroz, não passar nunca a guarda-livros.
Fernando Pessoa/Bernardo Soares, in Livro do Desassossego
Etiquetas: Fernando Pessoa, Livro do Desassossego
1 Comments:
E bom ler-te assim.......
Dizes o que sentes, expressas a tua revolta, opinião e não pôes nomes a ninguém.
Gosto.
ml
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