7.2.07

Aborto (VII)

Porque é um texto escrito com emoção...que também deve haver; porque é um texto escrito com fundamentações e argumentos que nos fazem pensar; porque a pergunta não pode, na minha opinião, ter uma resposta tão simplista como nos querem fazer crer e tem outros factores associados. Aqui deixo o texto de Graça Franco, publicado no jornal Público de 5 de Fevereiro.
O que me impressionou foi o silêncio. Espesso. Pesado. Agarrado às cadeiras rotativas do estúdio como se lhes roubasse de repente o movimento. E só por isso volto ao tema. O tom inquisidor produzira efeito. E eu, em casa, acordando para "a culpa" a responder à intimação de dedo em riste, que me vinha do lado de lá do televisor, num apressado exame de consciência: será que eu soube alguma vez de um aborto realizado por alguém próximo ou longínquo e, "em coerência" (segundo a invectiva de Vital Moreira), não me agarrei de imediato ao telefone para denunciar o crime e exigir a rápida punição dos envolvidos?
E não é que não? Mesmo sem localizar com clareza o momento exacto (quem sabe os meus amigos me poupam a um certo tipo de desabafos... ou no meu meio "privilegiado" essa não seja mesmo a solução corrente!). Tenho a certeza que não. Dei comigo, aliás, a constatar que a figura de denunciante não faz o meu género. Excepto uma meia dúzia de vezes e sempre pelo mesmo motivo. Como daquela vez que já aqui contei. Nos idos de Abril. Quando o Ribeiro espancou, pela milionésima vez, a pobre D. Esmeralda. Veio-me de novo à ideia a figurinha da senhora, frágil, no seu casaquinho de malha preto, num luto antecipado por si própria. E estremeci à ideia de o Ribeiro poder alguma vez ter exigido à pobre senhora que abortasse? Era bem capaz! A avaliar pela descrição do bicho e pela amostra que presenciei. E iria eu apontar o dedo à D. Esmeralda, perante o escárnio do vómito do Ribeiro?
De repente, apeteceu-me estar também nos Prós e Contras. Só para saber se, por acaso, naquele palco, naquela plateia, também o silêncio responderia a esta questão: quem sabendo que alguém das suas relações próximas, ou remotas, era vítima sistemática de violência doméstica (sendo regularmente insultada, maltratada, violentada, espancada, etc...) já tinha denunciado o criminoso, enviando-o com guia de marcha para o merecido calabouço? A violência doméstica já é crime!
Quantos diriam SIM? Muitos, poucos? Nenhuns? Ou na sala perpassaria o mesmo silêncio pesado? A esvair-se pelos cantos das bocas em trejeitos de culpa? Ou o silêncio daria antes lugar a um risinho nervoso, incomodado? Do género: Eu? Se já denunciei o senhor juiz do oitavo andar? O polícia do quarto? O primo Óscar? O pai da Ana da turma da Joaninha? O Sousa? Se já fiz queixa à polícia do patrão? E com que provas? Arriscando-me à fúria da família? Aos escândalos à minha porta. Com a mulher chorosa invectivando-me porque lhe roubara a companhia do "monstro que ela amava" e lhe deixava os filhos sem educação. Já para não falar da humilhação causada aos descendentes do polícia ou do juiz que assim os veriam enviados para a cadeia pelos respectivos pares.
E antes do programa ir para intervalo talvez houvesse ainda tempo para perguntar à plateia se, mesmo assim, e sem nos pretender transformar num país de "bufos", acreditavam que a lei podia, "criminalizando" essa ou outras condutas, ter algum efeito dissuasor? Útil pelo menos do ponto de vista da sinalética legal. Não que eu queira comparar aborto e violência doméstica, mas só para concluir que o facto de a sociedade pactuar com um certo tipo de comportamentos, aplicando simples censura moral, não é caso para os legitimar e, menos ainda, para os legalizar ou financiar com os nossos impostos. Pelo contrário, muitos progressos civilizacionais (e a luta contra a violência doméstica é um deles) podem passar exactamente pela opção oposta. Por quebrar esse pacto social e um belo dia dizer: Basta!
Como escrevia Jacinto Lucas Pires, "do que se trata é de discutir se o direito deve ter um fundamento ético mínimo ou se é apenas a regulação convencional do "facto consumado".Partilho com o cronista do DN o escândalo perante o baixar de braços, nesta batalha, dos que se dizem de esquerda. Os que consideram que a sua luta em defesa dos mais pobres e dos mais fracos não passa por lhes garantir todos os meios para poderem responsavelmente exercer o direito a ter o número de filhos que muito bem entenderem, mas por lhes oferecer "grátis" nos hospitais públicos o "desembaraço" daqueles a quem não poderão alimentar com o fruto do seu trabalho.
Se eu fosse uma daquelas mulheres trabalhadoras a que se referia Jerónimo de Sousa no seu discurso pró-SIM, forçadas a abortar porque a alternativa é perder o emprego ou passar a entregar todo o seu salário para pagar uma creche, não queria que ele lutasse pelo meu direito a abortar. O que eu exigiria a um dirigente comunista era a defesa do direito de todas as mulheres trabalhadoras a não serem despedidas quando engravidam, a serem reintegradas depois da gravidez e a disporem de creches gratuitas, horários de trabalho compatíveis, salários justos e apoios estatais à maternidade, reconhecendo-a como um bem económico e social precioso. A tudo isso eu voto SIM.
Mas o que vai a votos não é isso, e, embora paga com os nossos impostos a liberalização do aborto até às dez semanas, é uma medida bem mais fácil e baratinha do que uma política de intervenção social de apoio à maternidade das mulheres trabalhadoras (do tipo das adoptadas por Blair na Grã-Bretanha, pelos socialistas franceses ou pelo actual Governo alemão). Em Portugal o que vai a votos é a típica medida de cariz liberal e capitalista que Jerónimo de Sousa não deixaria de rotular, noutras circunstâncias, "da direita". As clínicas privadas de abortos passarão a ser parcialmente sustentadas com as verbas desviadas do SNS. Rentabiliza-se-lhes o negócio e, em contrapartida, passarão a pagar IRC, coisa que actualmente, por "falta de eficiência fiscal", ainda não se consegue cobrar às abortadeiras de vãos de escada.
Mas o PC, como a extrema-esquerda e como alguns intelectuais, como Lídia Jorge, argumentam hoje com os mesmos dados do problema de há trinta anos (como se ainda não houvesse ecografias num mundo das ecografias a 4D), como se a informação e contracepção não estivesse generalizada. Falar hoje de "coisa humana" não é um insulto à "coisa" é sobretudo um insulto ao estádio actual da evolução da ciência e ao grau de conhecimento da humanidade. Se "coisa" fosse, porque se consideraria "dramática" a sua eliminação? O drama resulta de se saber que aquela vida, com olhos, braços, pernas, e coração a bater é um filho. E essa "eliminação" tem nome. E coração é coração, por muito que aquele senhor dos Médicos pela Escolha venha agora dizer que o órgão que qualquer mãe ouve bater na primeira ecografia a não sei quantas pulsações por minuto é apenas e tão-só uma outra "coisa" qualquer. Demagogia sem limites!
Não é por acaso que na tal Europa desenvolvida, a que aprovou há trinta anos leis liberalizadoras (desconhecendo nessa ocasião o que hoje os neonatologistas nos mostram até à exaustão) a experimentação embrionária é proibida a partir do 14.º dia e não até às dez semanas. Porquê? Óbvio não é?
Dia 11 vai perguntar-se aos portugueses se dizem sim ou não a uma pergunta múltipla, confusa e ambígua. Creio mesmo que poderia ter sido com vantagem substituída por três: É favorável à despenalização, em certas circunstâncias, da mulher que aborte? É favorável à liberalização do aborto (a pedido da mulher e sem invocação de nenhum motivo) desde que praticado até às dez semanas? E finalmente: Acha que o aborto deve ser livre e gratuito nos hospitais públicos desde que praticado até às dez semanas? Assim ficava tudo mais claro. Eu responderia Sim, Não, Não. O que obviamente não é igual a SIM. Quando muito resulta em Assim Não! Como bem concluiu o professor Marcelo.
E dado que o professor já juntou um número de penalistas suficientes para resolver essa questão da ameaça da cadeia, pode o SIM dormir descansado e tranquilamente votar NÃO! Caso o que pretenda seja apenas conseguir a despenalização desejada das tais mulheres que abortam em estado de necessidade desculpante (como diz o prof. Freitas). Está conseguida. Basta ganhar o NÃO. A menos que a pergunta não seja directa e o que se pretenda seja mesmo a liberalização do aborto até às dez semanas, sem sequer estar sujeita ao aconselhamento dissuasor como na Alemanha, mas tão-só porque se considera ser esse "um direito da mulher". E até às dez semanas porque, pelo menos para já, não se tem coragem de ir mais longe como queria o PS no seu projecto inicial... É esse sim o meu receio e por isso votarei Não, Não, e uma vez mais NÃO!
Graça Franco, Público

0 Comments:

Enviar um comentário

<< Home