(Re)Leituras
"O silêncio à volta dos meus livros era agora total. E certas devoções serôdias, pelo que tinham de fruste na sua generosidade ambígua, gelavam-me a alma como um relento de falências. Iam longe as horas, se não de optimismo, de confiança. Parecia um sobrevivente, até quando uma ou outra homenagem ou um ou outro galardão vinham alterar a descampada paisagem dos meus dias. Era como se de cada vez assinasse vencido. Como se viesse à tona da desgraça mais desgraçado ainda. Arredado dos cafés e das tertúlias, as poucas notícias que tinha das tricas desses mundos de fumo e verrina eram-me dadas pelo Alvarenga, sempre fiel e sempre irreflectido.
(...)
O meu tempo continuava realmente cumprido. Continuava a escrever, a publicar e a corrigir incansavelmente, com a mesma insatisfação de outrora. (...) Sem mais direito ao amor e à inspiração, despojado de ambições e a redoirar a esperança à sobreposse, nem a lição de Agarez, a cavar por descargo de consciência a costeira maninha das courelas, me podia valer. De ora em diante, como lenitivo, só o cilício crucifante da meditação.
Sim, a vida ia continuar. Outros dias viriam cheios de sol, de flores e de frutos. Mas não seriam meus."
FIM DO SEXTO DIA
Miguel Torga, in A Criação do Mundo
D.Quixote, 2ª edição, 1999
2 Comments:
o porfiado trabalho do ferreiro, na forja, a aquecer a palavra, lenta e laboriosamente, com o fogo da paixão.
às vezes esquecemos quão perfeitamente esculpidos são os textos do MT.
obrigado pela lembrança, VA.
abr
O Torga de que eu mais gosto (bem... é o que eu conheço melhor! ;-)) é o dos diários. Estão lá tantos mundos!...
Os "teus" textos, VA, estão a meter-me no corpo (na alma! :-)) a vontade de ler "A Criação".
PS (m-l): Deixo aqui um pedido de ajuda. Há um conto (que suponho ser de Torga) onde um padre é chamado pelo bispo para ser repreendido e acaba com o caçador a ser caçado. Poderá alguém confirmar-me se é de Torga? Se sim, qual? [Obrigado antecipado]
Abraço.
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